Ronny Charles L. de Torres
Advogado da União. Doutorando em Direito do Estado e Regulação (UFPE). Mestre em Direito Econômico (UFPB). Pós-graduado em Direito tributário (IDP). Pós-graduado em Ciências Jurídicas (UNP). Membro da Câmara Nacional de licitações e contratos da Consultoria Geral da União. Autor de diversos livros jurídicos, entre eles: Leis de licitações públicas comentadas (12ª Edição. Ed. JusPodivm); Direito Administrativo (Coautor. 11ª Edição. Ed. Jus Podivm); RDC: Regime Diferenciado de Contratações (Coautor. 2ª edição. Ed. Jus Podivm); Licitações e contratos nas empresas estatais (Coautor. 2ª edição. Ed. Jus Podivm). Improbidade administrativa (Coautor. 4ª edição. Ed. Jus Podivm).
A Lei nº 14.133/2021 trouxe impactantes mudanças em relação à atuação do órgão de assessoramento jurídico. Diferentemente da Lei nº 8.666/93, que fazia alusão ao órgão de assessoramento jurídico apenas uma vez, a Nova Lei Geral de Licitações e Contratos deu especial atenção à Advocacia Pública, destacando-a para atividades relevantes no aperfeiçoamento do regime jurídico licitatório.
Embora a Lei nº 14.133/2021 preserve resquício da atuação de controle de legalidade para o órgão de assessoramento jurídico, outrora preconizada pela Lei anterior, induz fortemente a atuação de consultoria jurídica propriamente dita e também define a obrigatoriedade de representação extrajudicial e judicial dos agentes que atuam com as licitações e contratações públicas, o que ensejará uma reformulação estratégica da atuação da Advocacia Pública na área de licitações e contratos.
Tentaremos, aqui, resumir algumas das atividades definidas pelo legislador.
Primeiramente, ainda mantendo certo viés da atuação de controle burocrático, repetindo um pouco daquilo que foi iniciado com a Lei nº 8666, de 1993, a nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133, de 2021) define que, ao final da fase preparatória, o processo licitatório seguirá para o órgão de assessoramento jurídico, para que ele realize controle prévio de legalidade, mediante análise jurídica da contratação.
É uma disposição que mantém para órgãos de assessoramento jurídico a atividade atípica de controle, embora com contorno específico, voltado para a aferição da legalidade em sentido amplo. A atividade de controle propriamente dita é realizada pelos órgãos de controle interno e externo, que evoluíram muito nas últimas décadas, alcançando protagonismo no ambiente das contratações públicas, em comparação àquilo vivenciado no início da década de 90.
O legislador parece ter ignorado que o próprio desenvolvimento tecnológico e a evolução do Painel Nacional de Contratações Públicas (PNCP) farão com que esta análise de conformidade jurídica (legalidade) seja feita pelo próprio sistema e não pelo órgão de assessoramento jurídico. Isso porque, com o emprego de inteligência artificial (IA), o sistema conseguirá de maneira mais eficiente aferir a submissão das decisões administrativas dispostas durante a fase de planejamento e das regras editalícias ao regramento definido pela Lei. Uma vez padronizadas rotinas e assimilada a normatização, a alimentação dos dados pertinentes à contratação já induzirá per si atos e minutas padronizados e conformes às premissas definidas anteriormente, com reduzidíssimo espaço para “desvios”.
De qualquer forma, a natureza jurídica desse controle prévio de legalidade exige a percepção de duas interessantes nuances: primeira, a análise do órgão de assessoramento jurídico, quando necessária, deverá ser prévia, anterior à divulgação do edital de licitação. Por outro lado, diferentemente do que ocorreu na Lei anterior, a análise jurídica não se restringe à aprovação das minutas, pois há uma análise jurídica da legalidade da contratação.
Em relação a esta análise jurídica de controle da legalidade, o §5º do artigo 53 admite que ela seja dispensada nas hipóteses definidas previamente pela autoridade jurídica máxima competente. Trata-se da possibilidade, por exemplo, de emissão de pareceres referenciais ou mesmo da definição, por ato da referida autoridade jurídica, de espécies de processos nos quais análise jurídica não seria obrigatória, opção que, nos termos da Lei, deverá considerar fatores como: baixo valor, baixa complexidade, entrega imediata do bem ou utilização de minutas previamente padronizadas pelo órgão de assessoramento jurídico.
Atos como esses serão necessários para resguardar eficiência do órgão jurídico, o qual, pelos incentivos criados pela Nova Lei, terá que ampliar sua atuação na área de consultoria jurídica propriamente dita e na representação judicial e extrajudicial, funções típicas da Advocacia Pública que ganharam especial relevo no texto da Lei nº 14.133/2021 e serão tratadas na segunda parte deste artigo.
Como se vê, nada obstante tenha mantido atividade de controle para o órgão jurídico, a nova Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos ampliou as atividades expressamente previstas para exercício pela assessoria jurídica, referindo-se a sua necessária atuação em outros momentos do processo de contratação pública.
Por outras palavras, mesmo mantendo o órgão jurídico com a atividade de controle de legalidade da contratação, de maneira similar (mas não idêntica) ao que ocorreu na Lei nº 8.666/1993, a Lei nº 14.133/2021 fez questão de, em diversos momentos de seu texto, definir, por exemplo, a necessidade de exercício do papel de consultoria jurídica propriamente dita, que envolve o apoio aos agentes públicos assessorados, na tomada de decisão.
Com isso, o órgão jurídico é deslocado para uma função atípica, que exigirá readaptação aos membros da Advocacia Pública. Isto porque, quando exerce a atividade de consultoria jurídica, para além da análise de conformidade e avaliação de eventuais erros, deve o jurista enfrentar o dilema da decisão, analisando se há respaldo jurídico para a pretensão administrativa, a solução desejada ou a decisão aventada pela autoridade, avaliando os riscos e, quando for o caso, apresentando opções alternativas.
Diante da complexidade das relações jurídicas atinentes às contratações públicas, o órgão de assessoramento jurídico é fundamental para a evolução das licitações; de maneira que ousamos afirmar que não teremos a evolução que esperamos em nossa legislação, sem a atuação altiva dos órgãos de assessoramento jurídico.
É importante frisar que o legislador, ao tratar sobre a atuação do órgão jurídico no apoio aos agentes públicos que atuam com licitações, não se restringiu ao assessoramento apenas do ordenador de despesas, referindo-se expressamente à atuação da Advocacia Pública no auxílio à tomada de decisão por parte de diversos agentes.
Assim, por exemplo, o §3º do artigo 8º, ao definir que as regras relativas à atuação do agente de contratação e da equipe de apoio, da comissão de contratação e dos fiscais e gestores deveriam ser estabelecidas em regulamento, impõem que “deverá” ser prevista a possibilidade de que esses agentes contem com o apoio dos órgãos de assessoramento jurídico para o desempenho das funções essenciais necessárias à execução do disposto na Lei. Na mesma linha, o §3º do artigo 117 estabelece que o fiscal do contrato será auxiliado pelos órgãos de assessoramento jurídico e de controle interno da Administração, que “deverão” dirimir dúvidas e subsidiá-lo com informações relevantes para prevenir riscos na execução contratual. Outrossim, o parágrafo único do artigo 168, ao tratar sobre sanções administrativas, regra que na elaboração de suas decisões, a autoridade competente “será” auxiliada pelo órgão jurídico, que “deverá” dirimir dúvidas e subsidiá-la com as informações necessárias.
Esses dispositivos mostram a intenção do legislador de provocar uma necessária atuação do órgão jurídico de apoio aos agentes públicos tomadores de decisão, sejam eles ordenadores de despesas, agentes políticos ou técnicos que atuam diariamente enfrentando dilemas para aplicação do regime jurídico licitatório.
Em todas essas hipóteses, em todas essas situações, a atuação do órgão jurídico ou do membro da Advocacia Pública não significará a supressão da competência do agente público tomador de decisão, este sim competente e responsável pela decisão tomada e pelo ato administrativo praticado, mas estabelecerá uma relação de apoio que poderá, inclusive, repercutir juridicamente diante de eventuais questionamentos em detrimento do ato administrativo praticado.
Por outro lado, em sua atividade de apoio jurídico, o membro da Advocacia Pública não pode se limitar a um chancelador de decisões administrativas, sobretudo quando elas contrariarem o Direito. Diante de eventual ilegalidade ou ilegitimidade, deve o parecerista alertar a autoridade assessorada sobre esses vícios, manifestando-se contrariamente à prática da injuridicidade, orientando-a a tomar atitude diversa da pretendida.
Essa atuação de apoio, pouco explorada pelos agentes públicos tomadores de decisão, na maioria dos órgãos administrativos, tende a ser ampliada através dos incentivos criados pela Lei nº 14.133/2021, ao definir que o apoio pelo órgão de assessoramento jurídico pode resguardar o agente público tomador de decisão, garantindo-lhe a posterior representação judicial ou extrajudicial, pela Advocacia Pública, quando o ato praticado se conformar à opinião exposta no parecer jurídico, como tratado nos comentários ao artigo 10 desta Lei.
Nos termos do referido dispositivo, se as autoridades competentes e os servidores públicos que tiverem participado dos procedimentos relacionados às licitações e aos contratos de que trata esta Lei precisarem defender-se nas esferas administrativa, controladora ou judicial em razão de ato praticado com estrita observância de orientação constante em parecer jurídico, elaborado na forma do § 1º do art. 53 da Lei nº 14.133/2021, a advocacia pública promoverá, a critério do agente público, sua representação judicial ou extrajudicial.
Vale registrar que, de acordo com a Lei, ter a representação judicial ou extrajudicial pelo órgão de assessoramento jurídico será um direito do agente público, excetuadas aquelas hipóteses nas quais exista “provas da prática de atos ilícitos dolosos” nos autos do processo administrativo ou judicial.
Trata-se de interessante disposição, que robustecerá a segurança jurídica e a atuação corajosa de agentes públicos honestos, arrojados e inovadores, aproximará mais o órgão jurídico das demandas administrativas e, sem dúvida, irá gerar um incentivo à ampliação da provocação do assessoramento jurídico (apoio jurídico), na solução dos dilemas enfrentados pelos agentes que atuam com licitações e contratação pública. Sem dúvida alguma, a Nova lei de licitações impactará, e muito, a atuação jurídica.