Por Gabriela Pércio
A garantia da qualidade é alvo permanente de preocupações e debates entre aqueles que atuam com compras públicas. Além da qualidade em si, ou seja, o adequado funcionamento do equipamento, a utilidade material do produto e a correta execução do serviço, busca-se a qualidade suficiente para satisfazer plenamente a necessidade específica que motivou o processo de contratação, dentro de parâmetros admissíveis de economicidade.
No campo da prestação de serviços, o denominado paradoxo “lucro-incompetência”, apontado pelo Tribunal de Contas da União como consequência do pagamento por posto ou hora[1], impeliu à adoção, pela Administração Pública Federal, inicialmente no âmbito da contratação da tecnologia da informação, da Gestão de Níveis de Serviço – GNS nos termos da norma técnica ABNT NBR ISO/IEC 20000-1[2]. Um dos mecanismos da GNS é o Acordo de Níveis de Serviço-ANS (Service Level Agreement – SLA), que representa um compromisso formal de qualidade assumido entre o setor de TI e seu cliente interno. Essa concepção, contudo, não foi exatamente observada pela Administração Pública, que tomou o ANS como um acordo firmado com as empresas contratadas.[3] A Instrução Normativa nº 3/09 – SLTI/MPDG, que alterou a Instrução Normativa nº 2/08-SLTI/MPDG e introduziu o referido instrumento nos demais contratos de prestação de serviços, consolidou tal entendimento posicionando-o em paralelo ao contrato, o que, aliás, parece ter acarretado o seu fracasso e abandono.
A Instrução Normativa nº 5/17-SEGES/MP, em franco aperfeiçoamento da disciplina anterior, criou o Instrumento de Medição de Resultados – IMR, uma ferramenta específica, nativa dos contratos públicos, similar ao ANS, com o propósito de mensurar a qualidade da prestação do serviço pelo fornecedor a partir de um nível mínimo, devidamente previsto em edital e contrato, que representa o menor limite de qualidade tolerado pela Administração. Nessas condições, os pagamentos podem ser redimensionados conforme o nível de qualidade alcançado, atendendo à recomendação do TCU e garantindo a qualidade do serviço prestado. O contrato continua sendo a fonte de toda e qualquer disciplina referente ao ajuste, enquanto o IMR é a ferramenta utilizada para concretizar regras preestabelecidas.
A Lei 14.133/21 não se dedicou especificamente ao tema, mas previu, em seu art. 144, a possibilidade de estipular remuneração variável na contratação de obras, fornecimentos e serviços, inclusive de engenharia, vinculada ao desempenho do contratado, com base em metas, padrões de qualidade, critérios de sustentabilidade ambiental e prazos de entrega definidos no edital de licitação e no contrato, trazendo, assim, o respaldo normativo para a ampliação do uso do IMR.
Neste novo desenho de contratação, existem duas questões a serem fundamentalmente percebidas:
- O uso do IMR exige da Administração que avalie e defina, cuidadosamente, de forma concreta e objetiva, sistemática e periódica, a qualidade que deseja para os seus serviços. Esta mudança é um importante reflexo em um tempo em que se busca melhorias na governança das compras públicas. Assim, embora o fim imediato do IMR seja possibilitar o pagamento do justo valor[4] ao contratado, sua correta utilização deverá consolidar a praxe da avaliação constante da qualidade e, consequentemente, a melhoria do resultado das contratações, contribuindo para os objetivos da boa governança. Daí a importância de se compreender o IMR não apenas como uma ferramenta de fiscalização, mas também, de governança em compras públicas.
- A premissa do IMR é aferir a prestação do serviço com a qualidade necessária ao alcance dos objetivos da área que será beneficiada pelo resultado ou à satisfação do público usuário, conforme o caso. Trata-se de uma eficácia qualificada, não bastando que o contrato produza seus efeitos típicos, ou seja, que os serviços sejam prestados, sendo necessária a prestação com a qualidade mínima para a obtenção dos resultados pretendidos com a contratação. Isso requer a compreensão do IMR para além dos benefícios diretos da execução.
Segundo a IN 5/17-SEGES/MP, os resultados pretendidos são os “benefícios diretos e indiretos que o órgão ou entidade almeja com a contratação, em termos de economicidade, eficácia, eficiência, de melhor aproveitamento dos recursos humanos, materiais e financeiros disponíveis, inclusive com respeito a impactos ambientais positivos, bem como, se for o caso, de melhoria da qualidade de produtos ou serviços oferecidos à sociedade”.[5] Tais benefícios devem estar corretamente delimitados no processo para, assim, orientar a fixação dos níveis de qualidade e maximizar a eficácia do IMR.
Cabe notar, ainda, que a identificação dos elementos que servirão à construção do IMR deverá se dar não apenas sob o enfoque positivo, dos bons resultados esperados, mas também sob o enfoque negativo, definindo-se quais falhas de execução poderão ser admitidas por não comprometerem o alcance dos resultados pretendidos.[6]
Desse modo, o IMR, além de se prestar a evitar o paradoxo lucro-incompetência, viabilizando o pagamento pelo que for executado, visa garantir que os resultados pretendidos “em termos de economicidade e de melhor aproveitamento dos recursos humanos, materiais ou financeiros disponíveis” sejam alcançados.
Dito isto, resta claro que a construção de um IMR está longe de ser uma tarefa simples. Ao contrário, trata-se de mais um desafio aos agentes do processo de contratação, que necessitam do conhecimento específico que lhes dará a necessária segurança ao agir. É dever da alta administração proporcionar condições para tanto, notadamente por meio da capacitação, da modelagem de processos e documentos e da disponibilização de ferramentas de tecnologia da informação.
[1] Segundo o TCU, o pagamento por hora ou posto culmina no “paradoxo lucro-incompetência”, pois apresenta as seguintes disfunções: a) quanto menor a qualificação dos profissionais alocados na prestação de serviço, maior o número de horas necessário para executá-lo, maior o lucro da empresa contratada e maior o custo para a Administração; b) risco de remunerar a empresa sem a contraprestação em serviços efetivamente realizados, em razão da dificuldade da Administração em controlar a atividade dos profissionais terceirizados (vide Acórdão 1.558/2003-Plenário e Acórdão 786/06–Plenário).
[2] Especifica os requisitos para o provedor de serviço planejar, estabelecer, implementar, operar, monitorar, analisar criticamente, manter e melhorar um GNS. Os requisitos incluem o desenho, transição, entrega e melhoria dos serviços para cumprir os requisitos do serviço.
[3]A Nota Técnica 6/10-SEFTI/TCU traz os aspectos da Gestão de Níveis de Serviço e aponta ser “inadequado considerar ANS equivalente a contrato com fornecedor ou inserido neste”, devendo ser observado que “as normas ABNT associam o conceito de ANS à relação existente entre os clientes internos e a área provedora de serviços de TI da própria organização, e que tratam contratos e acordos como instrumentos distintos.” Ainda, segundo os técnicos do TCU, o mau uso do termo ANS em contratos públicos pode ter sido influenciado pela Instrução Normativa – SLTI/MP 2/2008, que incluiu o conceito de ANS no âmbito dos contratos de prestação de serviços continuados estabelecendo o ANS “como instrumento para definição de critérios de aferição de resultados (art. 11, § 3º ) e dos níveis esperados de qualidade da prestação do serviço e respectivas adequações de pagamento (Anexo I, XXII, da referida norma)”, não obstante “os elementos alteráveis” só possam “variar dentro da faixa de valores especificada previamente em edital licitatório e transcritas no termo contratual”.
[4] Pode-se considerar “justo valor” aquele que remunera os resultados efetivamente produzidos pelo contratado, considerando os termos das obrigações assumidas no ajuste celebrado com a Administração.
[5]Tribunal de Contas da União, nos estudos preliminares realizados para a contratação de fornecimento de combustíveis que concluíram pela viabilidade da “contratação de empresa especializada na prestação de serviços de administração, gerenciamento e controle para abastecimento de combustíveis, mediante a utilização de sistema informatizado e de recursos tecnológicos, por meio de internet, através de rede de estabelecimentos credenciados, para atender a frota automotiva do TCU”, foram indicados como resultados pretendidos os seguintes: “a) Uso mais eficiente dos recursos humanos do Tribunal, uma vez que o gerenciamento do contrato seria centralizado na Sede e os servidores das Regionais e da Sede não precisariam fazer os processos licitatórios anualmente, pois encontram muitas dificuldades para fazê-lo;
b) Controle centralizado da frota de veículos do TCU; c) Economicidade ao possibilitar a escolha do abastecimento em diversos postos da região, o que autoriza o servidor a escolher o posto mais barato no momento, e não o que aceitou o pagamento por nota de empenho, possibilitando também o abastecimento da frota sem sair da rota; d) Atendimento tempestivo das demandas, em especial quando da necessidade de deslocamentos dos veículos pelo território do estado, ou em âmbito regional ou nacional; e) Redução, ou mesmo supressão, do uso constante de suprimentos de fundos para realizar a aquisição de combustíveis; f) Sistema centralizado em uma só empresa gerenciadora, possibilitando que pequenos estabelecimentos, inclusive em cidades do interior, possam credenciar-se junto à empresa gerenciadora contratada pela Administração, o que lhes ensejará prestar serviços cujo acesso era antes inviável; g) Redução de despesas administrativas relativas à frota (coleta de dados, digitação, controles gerais, espaço físico, pessoal); h) Redução do número de processos licitatórios e de processos de dispensa;
i) Possibilidade de prorrogação do contrato por até 60 meses.”
[6]Assim, por exemplo, se a contratação de outsourcing de impressão for a opção administrativa ao invés de locação de impressoras, com o objetivo de melhorar a qualidade dos serviços e reduzir custos, os resultados deverão ser mensurados com base em parâmetros que possibilitem tais conclusões.