O mercado paralelo de garantias bancárias e seu impacto nas licitações e contratos administrativos
Por Juliana Miky Uehara – Advogada, consultora jurídica, especialista em licitações e contratos administrativos, fez parte do corpo editorial da Revista Licicon, autora do livro Contratação Direta Orientações para Instrução e Condução do Processo de forma mais eficiente; coautora do livro 101 Dicas sobre o Pregão; coautora do livro Pregão eletrônico e Presencial, além de autora de diversos artigos na área de licitações. Atualmente ocupa o cargo de Assessora Especial de Gabinete junto à Procuradoria Jurídica do Município de Pinhais.
Rogério Corrêa – Advogado especialista em Licitações e Contratos; pós-graduado em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná; em Direito Público pela Universidade Anhanguera; MBA em Gestão Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela Unicesumar; e especialista em Nova Economia e Desenvolvimento de Novos Negócios pela FAE Centro Universitário/Curitiba/PR.
Um assunto noticiado pelo Estadão[1] chamou bastante a atenção no início deste mês (nov/21). Segundo veiculado pelo jornal, existe um grande mercado paralelo de empresas que “vendem fianças”, isto é, negociam garantias, para que licitantes mal intencionados possam participar dos prélios públicos! Trata-se de um segmento milionário, cujo papel seria o de ressarcir os cofres públicos caso o licitante (futuro contratado) não conseguisse ou deixasse de executar o contrato.
Com o intuito de ludibriar os agentes públicos, as “instituições asseguradoras” valem-se do termo “bank” no nome, mesmo sem possuírem qualquer autorização do Banco Central ou da Superintendência de Seguros Privados (Susep) para atuar.
A reportagem expôs a existência de oito companhias que atuavam no segmento e ofereciam garantias para contratações firmadas junto ao Setor Público. Os contratos “atendidos” chegam a centenas de milhões.
As garantias financeiras que foram apresentadas em contratações públicas, pelas empresas mencionadas na reportagem, possuem validade até 2024 e envolvem fianças com valores que chegam a 10 milhões de reais – contudo, documentos entregues à Junta Comercial de São Paulo demonstraram incongruências nesses “banks”.
Comprovando-se que tais empresas em atuação irregular estão emitindo garantias destinadas aos certames públicos, estará caracterizada fraude nas licitações. Situações como estas devem acender um alerta geral aos gestores e profissionais envolvidos nos certames realizados em todo o país diante dos relacionados grandes riscos e prejuízos que poderão advir às contratações.
1. Sobre a fiança bancária nas licitações
Com o intuito de evitar que a Administração Contratante sofra prejuízos diante do insucesso da contratação, o legislador permitiu que a Administração exigisse dos interessados a apresentação de garantias. A matéria encontra-se disciplinada no art. 56 da da Lei 8.666/93, nos seguintes termos:
Art. 56. A critério da autoridade competente, em cada caso, e desde que prevista no instrumento convocatório, poderá ser exigida prestação de garantia nas contratações de obras, serviços e compras.
§1o Caberá ao contratado optar por uma das seguintes modalidades de garantia:
I – caução em dinheiro ou em títulos da dívida pública, devendo estes ter sido emitidos sob a forma escritural, mediante registro em sistema centralizado de liquidação e de custódia autorizado pelo Banco Central do Brasil e avaliados pelos seus valores econômicos, conforme definido pelo Ministério da Fazenda;
II – seguro-garantia;
III – fiança bancária (original sem grifos).
Das muitas inferências que se pode extrair da leitura do supracitado dispositivo legal, destaca-se o direito do licitante de escolher qual é a modalidade de garantia que mais lhe apraz. É justamente o exercício deste direito que parece ter contribuído para a criação do mercado de venda de fianças bancárias, uma das espécies de garantia indicadas pela Lei 8.666/93.
De acordo com o art. 818 do Código Civil Brasileiro, “Pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra”.
Na prática, “a carta de fiança é um contrato de fiança em que o banco (instituição bancária) passa a figurar como fiador em um determinado contrato”. Isto quer significar, em outros termos que, “a carta fiança consiste em um contrato em que uma instituição bancária, no papel de fiador, garante o cumprimento do trato firmado entre o afiançado e seu credor[2] (grifos no original).
De acordo com a doutrina especializada, “a fiança, também denominada caução fidejussória, é o contrato pelo qual alguém, o fiador, garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra”.[3]
Na carta fiança bancária temos, então, 3 figuras principais: a instituição financeira (pessoa jurídica – fiador), o devedor (afiançado, que será a empresa contratada no certame) e o credor beneficiário (a Administração Contratante). Sendo o banco o fiador do cliente, se comprovada a inadimplência deste, aquele deverá garantir o cumprimento do trato perante o credor (Administração Contratante).
Dada sua natureza de garantia fidejussória, a instituição financeira garante pessoalmente o adimplemento do afiançado/devedor, obrigando-se ao pagamento quando acionada pela Administração Pública.[4]
Como acima já mencionado, tal modalidade de garantia apenas poderá ser oferecida por bancos ou instituições financeiras devidamente registrados nos órgãos competentes: “A fiança prevista no art. 56 da Lei 8.666/93 somente pode ser emitida por entidade autorizada a funcionar pelo Banco Central” (TCU. Acórdão 2.467/17).
Embora essa exigência não estivesse expressa na Lei 8.666/93, a Nova Lei de Licitações (Lei 14.133/21) estabeleceu expressamente que a fiança somente poderá ser prestada por Instituição Financeira devidamente autorizada a operar pelo BACEN. Veja o que diz seu art. 96, §1º, inc. III:
Art. 96. A critério da autoridade competente, em cada caso, poderá ser exigida, mediante previsão no edital, prestação de garantia nas contratações de obras, serviços e fornecimentos.
§1º Caberá ao contratado optar por uma das seguintes modalidades de garantia:
I – caução em dinheiro ou em títulos da dívida pública emitidos sob a forma escritural, mediante registro em sistema centralizado de liquidação e de custódia autorizado pelo Banco Central do Brasil, e avaliados por seus valores econômicos, conforme definido pelo Ministério da Economia;
II – seguro-garantia;
III – fiança bancária emitida por banco ou instituição financeira devidamente autorizada a operar no País pelo Banco Central do Brasil (original sem grifos).
Portanto, o principal cuidado que a Administração licitante deve ter, ao receber cartas de fiança em seus certames, é se certificar que os referidos documentos realmente foram emitidos por bancos/instituições financeiras idôneos e devidamente autorizados a funcionar no país nos termos da legislação vigente.
Será possível consultar a idoneidade da instituição emissora da carta de fiança por meio da apresentação da certidão de autorização de funcionamento emitida eletronicamente pelo BACEN às instituições financeiras. Para consultar se uma instituição financeira está autorizada a funcionar, basta acessar a página do Banco Central do Brasil – no site existem campos específicos para pesquisas e acesso à lista de instituições autorizadas, reguladas ou supervisionadas pelo BACEN: www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/encontreinstituicao
2. Orientações importantes sobre fiança bancária nos contratos regidos pela Lei 8.666/93
Em setembro deste ano (06.09.21) a Secretaria de Gestão, enquanto órgão central do Sistema de Serviços Gerais (Sisg) publicou uma Orientação aos seus jurisdicionados para que estabeleçam em seus instrumentos convocatórios critérios suficientes para a aceitação de carta fiança nos termos da legislação vigente.
O objetivo é garantir a segurança jurídica na execução contratual (art. 2º da Lei 9.784/99 – lei que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal) e evitar a ocorrência de possíveis prejuízos ao Estado relacionados ao descumprimento do pagamento dos valores dados em garantia por Instituição que não estão autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil (BACEN).
A Orientação esclarece que “não há margem para discricionariedade quanto à aceitação de outras formas de garantia que não estejam previstas em lei, em obediência ao princípio da legalidade a que se vincula a Administração Pública”.[5]
Esta Orientação está em consonância com a Resolução BACEN 2.325/96 (que altera e consolida as normas relativas à prestação de garantias por parte das instituições financeira) se com a Lei 4.595/64 (que dispõe sobre a Política e as Instituições Monetárias, Bancárias e Creditícias), da qual destacamos os artigos abaixo:
Art. 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros.
Parágrafo único. Para os efeitos desta lei e da legislação em vigor, equiparam-se às instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual.
Art. 18. As instituições financeiras somente poderão funcionar no País mediante prévia autorização do Banco Central da República do Brasil ou decreto do Poder Executivo, quando forem estrangeiras (original sem grifos).
Outra orientação importante relacionada à fiança bancária, foi indicada pela Advocacia-Geral da União (AGU), diz respeito ao chamado “benefício de ordem”, que trata-se de um mecanismo de defesa patrimonial atribuído ao fiador, que quando for acionado pelo débito principal, poderá exigir que primeiramente sejam executados os bens do devedor afiançado.
A AGU, ao atuar na elaboração das minutas padrão destinadas a realização de licitações na esfera federal, para que haja uma maior segurança jurídica e também maior proteção ao interesse público contratual, entende pela necessidade de renúncia expressa do benefício de ordem por parte do fiador. Por exemplo, vide item 13.5.2.6 do modelo de Termo de Referência de Pregão Eletrônico disponível em nota.[6]
Segundo Carlos Henrique Benedito Nitão Loureiro, “à vista disso, a Administração Pública somente poderá aceitar fiança bancária na qual conste renúncia expressa ao benefício de ordem, uma vez que tal benefício dá margem para litígio, seja administrativo ou jurídico, quanto à responsabilidade imediata pra adimplemento da obrigação (dívida), contrariando o interesse público contratual, cuja tutela é perseguida com a constituição de relação jurídica acessória (seguro garantia), para fins de ‘tornar mais certa e rápida a satisfação de eventual crédito não solvido espontaneamente pelo devedor’, de acordo com a lição de Justen Filho, quando analisa a função da garantia contratual”.[7]
3. Algumas repercussões sobre as “empresas fantasmas de garantias”
As práticas do mercado paralelo de garantias não envolvem casos isolados, conforme demonstrado pela reportagem publicada pelo Estadão.
A Controladoria-Geral da União (CGU) informou que não possui dados sistematizados sobre esse contexto e que também não acompanha o modo como cada repartição pública atua sobre o tema. Como não há, atualmente, uma orientação a ser observada pelos Órgãos e Entidades, a CGU editará em breve “uma recomendação sobre o assunto, como parte do Sistema de Integridade Pública do Executivo (Sipef), com um checklist mínimo a ser cumprido antes da aprovação de uma fiança bancária”.[8]
Também será formulada representação junto ao Tribunal de Contas da União, pelo procurador da república junto ao TCU, Lucas Furtado, para que a corte também investigue o caso.
Ainda, para disciplinar o uso do nome “bank” e impedir que instituições não reconhecidas pelo BACEN se apresentem como bancos, também será proposto um “Projeto de Lei Complementar, por força do art. 192 da Constituição, com objetivo de evitar a existência de empresas que, no exercício lícito de sua atividade, possam dar a entender a pessoas muito humildes que elas seriam algum tipo de instituição financeira e não empresa que atua unicamente no âmbito do direito privado”.[9]
[1] Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,empresas-de-fianca-criam-mercado-paralelo-para-garantir-licitacoes,70003886252>. Acesso em 06.11.21. Veja mais em https://www.sollicita.com.br/Noticia/?p_idNoticia=18343&n=a-venda-de-fian%C3%A7as-e-as-contrata%C3%A7%C3%B5es-p%C3%BAblicas – Copyright © 2020, Sollicita. Todos os direitos reservados.
[2] Disponível em: <https://www.genebraseguros.com.br/faq-items/o-que-e-carta-fianca/>. Acesso em: 06.11.21.
[3] SHEIBER, Anderson… [et.al]. Código Civil Comentado – Doutrina e Jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 1104.
[4] SARAI, Leandro (org). Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14.133/21 Comentada por Advogados Públicos. São Paulo: JusPodivm, 2021. p. 1100.
[5] Disponível em: <https://www.gov.br/compras/pt-br/centrais-de-conteudo/orientacoes-e-procedimentos/34-orientacao-sobre-fianca-bancaria-nos-contratos-regidos-pela-lei-no-8-666-de-1993>. Acesso em 06.11.21.
[6] “13.5.2.6 – No caso de garantia na modalidade de fiança bancária, deverá constar expressa renúncia do fiador aos benefícios do artigo 827 do Código Civil.” Disponível em: <https://www.gov.br/agu/pt-br/composicao/consultoria-geral-da-uniao-1/modelos-de-convenios-licitacoes-e-contratos/modelos-de-licitacoes-e-contratos/termo_de_referencia__compras__pregaomai21.docx>. Acesso em: 06.11.21.
[7] SARAI, Leandro (org). Op. Cit.,, p. 1101.
[8] Disponível em: <https://www.dinheirorural.com.br/fianca-para-garantir-licitacoes-publicas-escapa-de-controle-da-cgu-e-dos-ministerios/>. Acesso em 06.11.21.
[9] Disponível em: <http://estaticog1.globo.com/2021/10/26/relatorio_final_26102021_12h40.pdf?_ga=2.79411668.1779148539.1636029763-439669879.1636029763>. Acesso em 06.11.21.